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Entrevista: Paixão e perseverança

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Em homenagem ao mês das mulheres, entrevistamos Roseli Oliveira da Silva, mecânica há mais de 20 anos. Ela enfrentou diversas barreiras para se tornar referência entre mulheres que exercem a profissão

 

 

Revista O Mecânico: Como você descobriu que queria ser mecânica?
Roseli Oliveira da Silva: Nasci em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo. A minha rua, onde moro desde que eu nasci até hoje, é uma rua sem saída. No lado esquerdo, tinha um posto de gasolina e vários guinchos. Do lado direito, tinha uma borracharia e uma oficina mecânica, que era a oficina do Toninho. Eu conseguia ver a oficina da janela do meu quarto. Sempre fui de dormir tarde, mesmo criança, então, quando era 10 horas da noite, eu via os mecânicos se matando para consertar aqueles caminhões, só com a lanterninha. Eu achava o máximo.

 

O Mecânico: Você tinha quantos anos de idade nessa época?
Roseli: Eu tinha 7 anos. Eu chegava do colégio, comia alguma coisa, ia para a oficina e ficava por lá. Até que me disseram: “aqui é lugar de menino, né?” Minha mãe e o meu pai reclamavam. Eles nunca me deram a menor força porque na família não tinha nenhum mecânico. Quando já tinha uns 9 anos, eu parei de ir à oficina do Toninho e comecei a frequentar uma outra oficina, que era de parede com a minha casa, que era a oficina da Júlia. Uma oficina de costura. Já que não podia ser mecânica eu fui fazer costura. Só saí de lá com 14 anos para trabalhar em uma empresa de banco de dados. Depois fui babysitter, já fui ajudante de cozinha, já fui vendedora…

 

O Mecânico: Então você começou a emendar um trabalho no outro em áreas diferentes antes de conseguir virar mecânica?
Roseli: Ninguém me apoiava em ser mecânica. Virei motivo de chacota na vila. Ganhei até apelido na época: “Ana Machadão” (nota: personagem da atriz Débora Bloch na novela “Cambalacho”, da Rede Globo). Minha mãe gritava: “sai dessa oficina, Ana Machadão!”. Em 1994, eu decidi parar de me importar com o que os outros iam falar e fui fazer o curso de mecânica no SENAI. Depois de formada, ninguém queria uma mulher trabalhando. Entreguei currículo para todo mundo e ninguém queria admitir uma mulher. Foi quando eu lembrei do Laerte, mecânico que era funcionário na oficina do Toninho. Àquela altura, ele já tinha a oficina dele. Pedi para trabalhar na oficina e ele disse que não tinha como me pagar. Respondi que não precisava me pagar: eu queria trabalhar de graça, queria aprender. Fiquei lá durante oito meses. Conheci atendimento, logística, toda a parte operacional de uma oficina. Agradeço muito a ele.

 

O Mecânico: E quando você conseguiu engrenar na profissão? Como você conseguiu seu primeiro emprego remunerado?
Roseli: Quando eu percebi que a oficina do Laerte estava pequena para mim, comecei a enviar currículos e consegui meu primeiro emprego em uma concessionária da Volkswagen em Mogi das Cruzes. Depois de trabalhar lá por um tempo, fui para uma concessionária no bairro do Ipiranga, em São Paulo.

 

O Mecânico: Quando surgiu na sua vida essa vontade de dar cursos de mecânica para mulheres?
Roseli: Nessa concessionária em Mogi das Cruzes eles davam um curso para amadores. Quem comprava o carro, ganhava o curso. Eu comecei a me interessar e me arrumaram os materiais. Fui para a concessionária do Ipiranga e ali fiz o treinamento para poder dar esse curso. A oficina fechava e eu ficava para ministrar o curso, que era de uma semana. E foi um grande aprendizado. Depois eu comecei a dar cursos de mecânica para mulheres em vários supermercados, como naquela antiga rede Big, também em escolas de inglês, em vários lugares. Onde me chamavam, eu ia. Mas não tinha remuneração nenhuma.

 

O Mecânico: Era tudo pela paixão e pelo desenvolvimento pessoal?
Roseli: Exatamente. Eu não tinha namorado. Meus namorados eram os livros e os carros (risos).

 

O Mecânico: Você participou de vários programas de televisão falando de mecânica. As emissoras te procuraram ou você as procurou?
Roseli: Nunca fui de ver televisão, mas um dia eu estava assistindo o programa da Ana Maria Braga quando ainda era na Record. Comentei com a minha mãe: “nossa, eles colocam de tudo nesses programas, né? A senhora alguma vez já viu ensinar sobre carro?” Ela respondeu que não e eu disse: “então eu vou lá”. Minha mãe duvidou e riu. Que Deus a tenha, mas era difícil. Hoje, eu vejo que era a idade. Ela era bem idosa e achava que coisa de homem era coisa de homem, e coisa de mulher era coisa de mulher. Eu liguei lá, mandei o release e no outro dia me chamaram para conversar. Expliquei o que eu queria fazer e me pediram para trazer as peças. Só que eu passei nas oficinas e peguei peças sujas: filtro de óleo sujo, filtro de ar, pastilhas velhas… Voltei para a Record, coloquei as peças em cima da mesa e me mandaram tirar, gritando “pelo amor de Deus, arruma peça limpa!” Aí eu fui numa loja de autopeças, pedi emprestado peças novas, voltei na Record no dia seguinte e consegui entrar ao vivo com a Ana Maria Braga. Foi bem no último programa dela na Record. Quando ela foi para a Globo, participei mais duas vezes do programa dela. Numa dessas vezes, minha mãe viu e depois me disse que tinha orgulho de mim.

 

O Mecânico: Você encarou muito machismo dentro da profissão? Como as pessoas que você treinava, seus clientes e mecânicos encaravam sua figura, como mulher, em um meio tão masculino?
Roseli: Uma vez eu estava fazendo estágio numa Freios Varga quando um cliente chegou na loja e disse “olha, eu não quero ela botando a mão no meu carro. Não quero mulher mexendo no meu carro”. Eu não respondi. Nunca fui de brigar, só na escola que eu era mais brigona. Disse a mim mesma: “deixe estar”. Eu sinto que, pela profissão, pelo destaque, talvez, o homem tem sim um certo medo de ser superado pela mulher.

 

O Mecânico: Quando você conseguiu montar sua própria oficina?
Roseli: Depois de trabalhar na concessionária no Ipiranga, eu fui para uma outra em Santo Amaro. Foi aí que em um curso de atualização eu conheci um rapaz mecânico. Conversa vai, conversa vem, ficamos amigos, depois começamos a namorar. Isso era em dezembro de 2000 e eu tinha começado a atender serviços na garagem de casa. Eu tinha saído da concessionária, ele também saiu da que trabalhava. Em março seguinte, meu pai falou que não queria mais bagunça na garagem e arrumamos um galpão. Então, em 9 de março de 2001, abrimos a oficina Hay Flex. Já faz 15 anos. Parece que foi ontem… A gente não tinha dinheiro para comprar nada, nem ferramenta tinha. Tive muito apoio de concessionárias e colegas para arrumar equipamento.

 

O Mecânico:  Desde que você abriu a oficina, como tem sido o movimento durante esses 15 anos? O mercado mudou bastante de lá para cá, não só com a crise econômica atual como também a eletrônica embarcada nos carros.
Roseli: A gente participa de muitos cursos, as coisas mudam muito rápido. A engenharia muda a cada minuto. Mas o mercado muda bastante. Nós não temos funcionários, somos só nós dois, porque, infelizmente, o mercado está muito difícil. Temos só uma pessoa que vem limpar a oficina a cada dois dias. Eu não tenho rampa de alinhamento e tenho que levar o carro para alguns amigos para fazer alinhamento. Eu passo nas oficinas aí e às vezes elas estão vazias. Nos últimos cinco anos, eu estou vendo o pessoal se apertando e, graças a Deus, eu não me aperto.

 

O Mecânico: É mais fácil administrar uma oficina ou consertar um carro?
Roseli:  Consertar o carro, meu filho, com certeza. Aqui a gente tem que assoviar e chupar cana (risos). Tive que aprender muita coisa na raça. Acertando ou errando, teve que ser assim. Mas valeu a pena!

 

O Mecânico: Qual conselho você deixa para as meninas que pretendem ingressar na profissão? Hoje, tem muito mais mulheres interessadas em mecânica.
Roseli: Tem que ter muito peito e tomar muita água para engolir os sapos (risos). Hoje nas palestras que eu faço para a Porto Seguro, as mulheres comentam que me viam. Muita gente que faz curso já falou que é porque me via na televisão. O ramo automotivo está crescendo e acabou aquela história do que é masculino e do que é feminino. É a paixão. A paixão do brasileiro é o carro, então, nada melhor do que a mulher também poder consertá-lo.

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